Excelentíssimo senhor presidente, Não tenho pretensão de que o senhor
venha, de fato, a ler esta carta. Até confesso uma expectativa ingênua de
que, num daqueles cisnes negros ou cinzas de Nassim Taleb, numa sucessão de
encaminhamentos por e-mail ou WhatsApp, este documento possa um dia vir a
encontrá-lo. Mas não é essa minha real perspectiva. É um exercício platônico
a princípio, que nos ajuda a pensar o Brasil. Reconheço no senhor, entre outras
virtudes, a capacidade de contar boas histórias. Arrisco-me, então, por essa
via, já ciente de que, aqui ou ali, este texto pode transmitir uma
proximidade que não temos, nem nunca teremos. Sei meu lugar no mundo. Mas o senhor
é sempre tão espontâneo e empático em suas interações que parece autorizar
essa aproximação. Desde que assisti a “Entreatos”, me vi algumas vezes
esboçando um diálogo mental com o senhor. Até tentei tangibilizá-lo certa
vez, quando pretendia realizar “Uma Conversa pelo Brasil”, mediando um debate
entre o senhor e Fernando Henrique Cardoso. Conversei longamente com Paulo
Okamoto. O senhor pode conferir com ele. Por alguma razão, não foi pra
frente. Lamento, pois entendo que seria muito rico, um documento histórico. De algum modo, portanto,
materializo hoje uma conversa que já tive algumas vezes comigo mesmo. Eis um causo verdadeiro para
começarmos: Por alguns anos, convivi com um
grande executivo, líder de reestruturações profundas nas maiores empresas do
Brasil. Ficou tão reconhecido e renomado que virou empresário, montou sua
própria consultoria. Foi conselheiro de banco grande. Olha, posso lhe dizer:
era um notável. Como eu admirava aquela inteligência, a altivez e a retidão.
Deu-se muito bem financeiramente também — ao menos por um tempo. Acumulara
patrimônio de R$ 150 milhões, até que… A última esposa tirou-lhe tudo. A
confiança nos amigos, a convivência com os filhos, o ouvido dos conselheiros
mais sábios e próximos (ah, como eram importantes!), os prazeres individuais
e, claro, o dinheiro. Ela preparava um tipo de chá especialmente viciante,
que, imagino, o senhor, assim como eu, deva conhecer também. Perigosíssimo.
Um tipo de feitiço capaz de convencer-lhe de que apenas ela era capaz de
cuidar dele e só ela o amava. Ao adicto, só importa o vício. Ao final, meu amigo empresário, que
eu tanto admirava, morreu com R$ 20 milhões de dívidas. A família precisou
socorrê-lo financeiramente para pagar a conta no Einstein. É uma anedota particular na
tentativa de promover uma reflexão mais geral. Tio meu sofreu do mesmo mal. Isto me parecia impensável há
alguns anos, mas devo confessar-lhe: sinto saudades de Dona Marisa. Tudo bem,
ela tinha um gosto meio peculiar para imóveis no Guarujá, mas, dadas as
circunstâncias e tudo que se seguiu, essa é uma questão quase irrelevante,
vira uma nota de rodapé. Reconheço, presidente, como deve
ser difícil equilibrar-se entre o militante de esquerda e o presidente,
historicamente, pragmático. Mas escrevo-lhe fundamentalmente porque encontro
uma brecha para isso. Há um espaço retórico para que o senhor comece a respeitar
a aritmética elementar das contas públicas sem precisar se afastar de sua
base eleitoral. Uma oportunidade talvez única para que o senhor recomece este
governo. Dois pilares estruturantes
fundamentariam sua narrativa. O primeiro é de cunho mais pessoal.
O senhor acaba de passar por risco de morte. Isso pode mudar a perspectiva de
vida de qualquer um. Ninguém quer morrer com rancor ou ressentimento do pai,
da mãe, do irmão. Todos são capazes de entender isso, porque, de algum modo,
vivenciaram algo semelhante na própria família. Segredo nosso, presidente: eu
mesmo gostaria de ter tido uma última conversa com meu pai, para sublimar
certas divergências. Não pude tê-la, o que me custou alguns anos e milhares
de reais em terapia. Para um político, ainda mais da dimensão do senhor,
encerrar a jornada de forma ressentida com metade da população não me parece
o fechamento que todos mereciam. O clima de Natal é propício para isso, dê a
outra face mesmo a seus críticos vorazes. O “Lula Paz e Amor” governando como
o Ubermensch de Nietzsche, acima desse discurso polarizado idiota de uma
guerra do bem contra o mal. O senhor leu o Eduardo Giannetti hoje no Estadão?
Implemente no governo (e não apenas na eleição) a ideia da Frente Ampla,
acolhendo também o outro lado. Mandela brasileiro. Por que descer ao nível de
seu adversário derrotado colocando-se como antagonista numa briga que já foi
ganha? O outro é menos pessoal. Obedece a
uma espécie de materialismo histórico. Estamos chegando à metade do seu
governo. Adote o discurso de que cumpriu o objetivo nesses primeiros dois
anos. Reduziu a miséria e salvou a democracia brasileira de minutas capazes
de nos lembrar que “Ainda estou aqui” é muito mais do que um belo filme, mas
também um recado a respeito da sobrevida de alguns de nossos fantasmas. Feito
isso, superadas essas questões fundamentais, o senhor poderia iniciar uma
nova fase, cuja essência juntaria responsabilidade fiscal à social — afinal,
é impossível haver, de maneira sustentada, a segunda sem a primeira. Colherá os frutos políticos disso.
Talvez o senhor ainda não tenha tanta clareza sobre o processo, mas a verdade
é que não há opção. Os poucos conselheiros que lhe restaram, os falsos amigos
incapazes de dizer que “o rei está nu”, podem insistir em dizer: está tudo
bem. A economia cresce a bom ritmo, o desemprego está baixo, a inflação não
disparou. A confiança do consumidor está alta, o índice de miséria (soma da
inflação e do desemprego) lhe é favorável e sua popularidade se mantém em
níveis competitivos. Na dicotomia que existe entre Main Street e Wall Street,
a segunda costuma estar certa, porque consegue olhar em perspectiva. A foto
não condiz com o filme. “Eu sou você amanhã”, para usar as palavras de um
gestor consagrado. Com o dólar acima de R$ 6, indo
para R$ 7 ou R$ 8 rapidamente se as coisas não mudarem, a inflação de 2025
deve ser superior a 6%. A curva de juros aponta Selic terminal acima de 16%.
Não sei se chegará a tanto, mas o aperto monetário em curso vai bater na
atividade. O desemprego aumenta. Já temos contratado um incremento do índice
de miséria. É inexorável. A inflação já vai subir. E se o senhor tentar
impedir o aumento do desemprego, mantendo o pé na tábua fiscal, só vai jogar
querosene nessa fogueira, pois ficará ainda mais claro que a dívida é
insustentável. O dólar vai disparar. Perderemos a moeda e a inflação virá a
galope. Não haverá como manter sua
popularidade. Diante de uma sociedade muito dividida, de uma marcha mais à
direita nas eleições municipais, de um zeitgeist contrário ao incumbente e à
constelação de progressismos adotada pela esquerda (veja Milei ou Trump; ou
mesmo o que deve acontecer no Canadá, no Chile e na Colômbia — a exceção é o
México), a continuar dessa forma, o senhor (ou seu indicado) perderá as
eleições. Talvez, percebendo a derrota, o
senhor nem concorra em 2026. Dirá que ganharia se concorresse, mas a saúde
e/ou a idade avançada lhe tiraram do pleito. Como a história não tem o
contrafactual, a afirmação será não-falseável. Assim, poderá, quem sabe, salvar
o lulismo para além do Lula, mas não conseguirá salvar a si. Está previsto um pronunciamento do
senhor hoje na TV. Espero que vá na direção da “União Nacional”, sem o
sectarismo do “nós contra eles”, sem os ataques difusos, inférteis e
mentirosos sobre a Faria Lima ou “o mercado”, um inimigo sem rostos. Sinceramente, mesmo se for por esse
correto caminho, ainda será pouco. Primeiro pela simples razão de que
palavras não pagam dívidas. O senhor saiba: não há mais o benefício da
dúvida. Qualquer vestígio de credibilidade foi embora. A situação só será corrigida
com medidas concretas, tangíveis e críveis. Os acontecimentos recentes
arrastaram também a credibilidade do ministro Haddad. Não por incompetência
dele ou falta de vontade individual, mas pela percepção de que, no final do
dia, qualquer ministro é fraco diante do senhor. Este governo é essencialmente
personalista e a mudança real há de vir do Presidente, na comunicação
explícita e nas medidas concretas apoiadas pela sua figura. O segundo ponto para irmos além do
pronunciamento de hoje: palavras faladas dizem menos do que o registro por
escrito. “Verba volant, scripta manent”…. O senhor se lembra do peso dessas
palavras. Escreva uma "segunda carta ao
povo brasileiro". Aqui está entre aspas por deliberação e rigor. Precisa
ser com este título mesmo, para suscitar a associação imediata com a
primeira. O conteúdo será conhecido a partir do próprio título, sem nem precisarmos
ler. Nela, o senhor poderá apoiar-se
sobre os dois pilares supramencionados, explicitando como a segunda metade do
seu mandato terá uma postura de Estadista. Para isso, precisaremos cuidar do
Brasil para além de seu mandato. As futuras gerações herdarão uma dívida
controlada e uma moeda capaz de preservar valor. Por isso, o senhor fará um
plano fiscal criterioso, rígido e amplo, com vistas a estabilizar rapidamente
a trajetória dívida sobre PIB. Coloque essa meta em pé de igualdade com a
redução da miséria (afinal, elas são mesmo correlacionadas). Explicite um objetivo maior:
recuperar o investment grade, conquistado no seu governo lá atrás e perdido
posteriormente. Reconheça a dificuldade da conquista, mas coloque seu capital
político a favor dela, apontando medidas concretas em prol de sua realização.
Tornar o arcabouço fiscal consistente e sustentável é, sim, uma meta, mas só
o primeiro passo de uma estratégia maior, que visa a retomada do grau de
investimento até o final de 2026. Demonstre a sua típica ambição e seu
pensamento grandioso, normalmente aplicados a indicadores sociais e a
participação internacional do Brasil, também na esfera fiscal. Se quisermos e
nos empenharmos na direção correta, podemos ir muito além do que os cálculos
de melhorias marginais, incrementais e lineares das planilhas de Excel
costumam sugerir. Não precisamos ir longe. Olhe a Argentina. Alguém diria que
ele seria capaz de fazer tanto em tão pouco tempo? Na Carta, com letra maiúscula para
reforçar sua importância, anuncie a criação de seu DOGE. Convide Pérsio Arida
e Henrique Meirelles para sua composição. Eles chegaram a aparecer ao seu
lado na campanha. O senhor tem a narrativa. A competência de ambos é
inquestionável, amplamente reconhecida. O dólar voltaria imediatamente a R$
5,80 e o senhor ainda teria o discurso de combater os supersalários, atacando
o andar de cima, entre outras coisas de ineficiência do Estado, claro.
Convide Armínio Fraga para uma reunião, queira ouvi-lo abertamente. Além de
colher boas ideias, o senhor realizará um ato de grande simbolismo histórico. Presidente, há como arrumar o
Brasil ainda no seu mandato e evitar uma grande crise. Mas talvez essa seja
sua última chance. Se esperarmos bater no emprego e na inflação para, só
então, agir, pode ser tarde demais. Este é o melhor presente de Natal
que o país poderia ter. Desejo ao senhor e aos três
leitores desta Carta: boas festas. Que todos possam aproveitar o momento para
encontrar sentido, propósito, pertencimento e percepção de utilidade. A
felicidade caminha por aí. Na falsa esperança de que esta
carta chegue ao senhor, Um fraterno abraço, |
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